segunda-feira, 29 de abril de 2013

 Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha esse coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida minha face?

Cecília Meireles

segunda-feira, 22 de abril de 2013

  1984: Ano 1, Era de Orwell

Enquanto os mortais
aceleram urânio
a borboleta
por um dia imortal
elabora seu voo ciclâmen

uma dança
de espadas
esta
escrita
delirante

lâminas cursivas

a lua
entre dois
dragões

com uma haste
de bambu

passar
por entre lianas
sem desenredá-las

Haroldo de Campos




domingo, 21 de abril de 2013

  Soneto

Carregado de mim ando no mundo,
E o grande peso embarga-me as passadas,
Que como anda por vias desusadas,
Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo.

O remédio será seguir o imundo
Caminho, onde dos mais vejo as pisadas,
Que as bestas andam juntas mais ornadas,
Do que anda só o engenho mais profundo.

Não é fácil viver entre os insanos,
Erra quem presumir que sabe tudo,
Se o atalho não soube dos seus danos.

O prudente varão há de ser mudo,
 Que é melhor neste mundo mar de enganos
Ser louco cos demais, que ser sisudo.

Gregório de Matos


sábado, 20 de abril de 2013

   Estação Primavera

Esta não é plataforma de embarque
porque a viagem começa bem antes,
mas é a primeira estação de passagem
para a descoberta final de si mesmo.

Não há bilhete que indique o destino,
nem placa, nem guia, nem mão, nem ensino.
A estrada exige somente coragem,
difícil traçado do próprio caminho.

O tempo é de sobra e a existência contínua.
Espelhos não mostram o percurso dos anos.
O prazer da aventura e a paixão pela vida
sustentam ilusões e compensam enganos.

Para o corpo entregue à emoção timoneira
o horizonte mais amplo é frágil fronteira.
Tudo é passível de um gesto mais longe.
Tudo é possível de um novo começo.

O vento de popa estilhaça correntes:
antigas amarras de afagos paternos,
trilhas seguras em mapas eternos,
palavras visíveis ao som de um olhar.

Nada resiste à invenção do momento.
Ser é um saber que respira no peito.
Dor é o sabor de um encanto desfeito.
Amar é saber o sabor de um cheiro.

A alegria se colhe na mão companheira,
a solidão semeia à beira do amor.

Carlos Queiroz Telles